sábado, 11 de janeiro de 2014

GUERRA COLONIAL: OPERAÇÕES ENCOBERTAS (6)





OPERAÇÃO VOUGA: A PIDE FAZ DE POLÍCIA BOA, GENERAIS DE CALÇAS NA MÃO

O relato seguinte não é, propriamente, uma operação “encoberta” clássica. ´ 

Trata-se antes de uma acção de retaliação com invasões várias “não declaradas” e massacres de populações de um Estado vizinho, sem o seu consentimento expresso, mas cúmplice, desde que a movimentação castrense não desse nas vistas ou, com mais propriedade, não desse para o torto.


Durante o período colonial africano, a cumplicidade entre os governos de Malaui e Portugal foi uma das imagens de marca utilizada pelo regime de António Salazar para defender a sua política de defesa intransigente do Império unificado do Minho até Timor.

No Malaui estava no poder um regime negro surgido de uma separação da potência imperial inglesa. 


Ao lado, no vizinho Moçambique, esse poder era exercido por um governador colonial, que era servido por tropas “brancas”, defensoras do Império que se afirmava do Minho ao Timor. 


Apesar de tal, o governo de Hastings Banda mantinha um relacionamento bilateral amistoso e continuado com o executivo de Lisboa. 

Claro que esse relacionamento fazia-se a nível institucional. 


De tal modo que, tal como atrás foi referido, o ministro da Marinha malauiana foi, “clandestinamente”, durante alguns anos da década de 60, um oficial da Reserva Naval da Armada portuguesa.

Na realidade, Banda tinha de “suportar” o facto de o Continente negro está a ser percorrido pelos ventos da descolonização. 


Permitindo-o, ou não, mas fechando os olhos, tinha de servir de retaguarda logística aos movimentos guerrilheiros que actuavam em Moçambique, e o poder colonial instalado em Lourenço Marques actuava, em segredo, realizando operações terroristas no território vizinho, visando afectar a guerrilha da FRELIMO. 

Hastings Banda foi conivente. 


Não era por acaso que o seu cônsul junto das autoridades coloniais de Lourenço Marques era o engenheiro Jorge Jardim, que actuava, na prática, como “pró-consul” de António Salazar em Moçambique,  uma figura obscura, mas omnipresente nos destinos do território moçambicano (e não só), incluindo o próprio planeamento militar da colónia, ultrapassando em muitos casos a hierarquia castrense, que se encolhia e se desautorizava, cobardemente, perante os inferiores.


Mas, por vezes, a movimentação militar portuguesa extra-fronteiras e, no caso concreto, do Malaui, apresentava revezes ou era detectada. 

Acontecia mesmo que os “excessos” (massacres programados) no terreno que tinham sido previstos e aprovados pela estrutura dirigente das Forças Armadas de Moçambique foram apanhados nas malhas das tropas do outro lado, não tendo sido possível camuflar, de imediato, o “incidente” até porque ele foi brutal e sanguinário para as populações civis.

Assim aconteceu, em Fevereiro de 1968: uma companhia do Exército português fez uma surtida violenta e arrasadora no interior do Malaui e destruiu a povoação de Cuizimba, na região de Forth Johnston.





fronteira Moçambique/Malawi

Recebeu o nome de operação “Vouga”, e enquadrou um conjunto de acções clandestinas no Malaui praticadas pelas Forças Armadas portuguesas. 

Essas acções faziam parte de um plano que foi aprovado pelo comandante do sector A do teatro operacional em Moçambique o então brigadeiro Hipólito.

O que sucedeu em Cuizimba apenas ficou registado, por escrito, porque a Polícia Internacional e de Defesa do Estado (PIDE), delegação de Moçambique, elaborou relatórios sobre o “incidente entre as nossas tropas e polícia malawiana”.

Todavia, no relatório de fim de comissão da companhia que participou no massacre nada consta sobre o assunto. 

Na “História da Unidade”, existente no Arquivo Histórico Militar, o seu comandante, o então capitão miliciano de artilharia Eduardo de Almeida Nogueira Coelho, omite a existência da operação Vouga e o que fez no território malauiano.

“A nova missão no *sector A* era de intervenção (sublinhando no documento) e as operações desenrolavam-se junto à fronteira com o MALAWI para impedir a penetração do IN em território português, o que foi conseguido em parte, dado o excelente moral das NT, bem apoiadas logisticamente, para o que muito contribuiu a mudança da sede para MASSANGULO, como base temporária, em 03JAN68”,  escreve o citado capitão na sua “História da Unidade”, fascículo V, com data de 28 de Fevereiro de 1968 sobre a sua actividade operacional naquela região.

  Depois enumera, com pormenor, o quadro de operações em que participou a sua companhia, sem nunca assinalar a citada operação, ou seja, a sua investida em terras do Malaui, cujo relato termina com a síntese seguinte:

   “Como fica referido a actividade da Companhia no Campo Operacional limitou-se a zonas de fronteira e o IN entrava esporadicamente no nosso território, para se acoitar com facilidade em território MALAWIANO, o que dificultou a acção das NT em todas as 20 operações em que participou no período para o neutralizar”.
            
   Assinala, longamente, num tom grandiloquente, a primeira baixa da companhia:
     
     “Foi na operação HIENA, que havia de registar-se o primeiro morto da companhia, em consequência duma armadilha, colocada num trilho de passagem, provocando ainda ferimentos graves num guia autóctone e noutra praça, os quais foram evacuados para o hospital de Vila Cabral.
             
    "Dada a familiaridade existente entre todos, a amizade e a consideração por que era tido o valoroso Mártir da Pátria, causou profunda consternação e um sentimento de pesar tão profundo que se reflectiu, como não podia deixar de ser, no Moral da Companhia, mas sem afectar o seu comportamento brioso nas operações. Subsequentes.
  
     “A companhia chorou; e na despedida as palavras proferidas pelo seu comandante de secção, furriel miliciano, José Manuel Teodoro Bichinho – “QUE DEUS TE DÊ O ETERNO DESCANSO” – provocou uma convulsão tão sentida que as lágrimas bailando nos rostos queimados pelo sol escaldante da época, eram bem dignas de figurar num quadro para perenidade da camaradagem e dos elos indistrutíveis que unem a FAMÍLIA MILITAR”.
            
    O capitão “esquece-se” de referir, pelo menos, a incursão na zona de Forth Johnston, onde perdeu um dos seus homens e uma arma pesada, o morteiro, tendo abandonado apressadamente a região, quando apenas meia dúzia de polícias lhe fizeram frente.
             
   Mas, a PIDE estava atenta e, logo no dia 25 de Fevereiro de 1968, fazia chegar à sua direcção central em Lisboa a denúncia.
             
      "Transcrevo para V.Exa rádios 58 e 59/68 Gab vindos hoje de Vila Cabral”, assim se dirigia, pressuroso, o responsável da PIDE (“Interpol”) em Lourenço Marques ao seu superior hierárquico em Lisboa, e depois explanava:
             
     “Primeiro, informo Vexa que no dia 17 dois grupos de combate da companhia MOHCO que realizava operações na área de Massangulo violaram a fronteira do Malawi, destruindo totalmente a povoação de Cuizimba cerca de 4 milhas no interior. Ao serem detectados pela polícia do Malawi e alvejados por esta, debandaram para o nosso território, ficando no local o primeiro cabo com morteiro e pistola, que mais tarde foi preso. Numa atitude simpática, a polícia do Malawi entregou o cabo e armamento no nosso posto de Mandimba.




              Mandinba
   
   Segundo Rádio, informo Vexa que ontem à noite estiveram no posto de Mandimba os administradores de Fort Johnston e o chefe da polícia de Namweras a comunicar que a nossa tropa continua a destruir as povoações fronteiriças do Malawi mas que se não desistir de o fazer é inevitável um recontro armado entre as suas e as nossas tropas”.
              
  As mensagens seguiram para a Presidência do Conselho e Ministérios da Defesa Nacional, Negócios Estrangeiros, Ultramar e Interior.
             
    Claro que a mensagem da PIDE não era inocente, nem a polícia estava preocupada minimamente com as incursões e as violações de fronteira, mas sim porque a surtida fora feita sem o conhecimento do chefe de posto local e o comandante militar parecia não dar qualquer “cavaco” à polícia política. Além do mais, a operação correra mal.
            
    Depois das mensagens cifradas iniciais, a delegação de Moçambique da polícia política elabora um circunstanciado relatório confidencial, tendo como “entidade informadora” a Subdelegação de Vila Cabral. A data registada é 3 de Março de 1968.



                                               Relatório policial da PIDE


  Em três páginas A-4, o subdirector da PIDE em Lourenço Marques arrasa o brigadeiro comandante da zona e o comandante da companhia de Caçadores 1626. 

 O oficial-general, quando confrontado com as inquirições policiais, tentou lançar o ónus único da culpa para a hierarquia inferior, nomeadamente, o capitão Coelho.
             
     O responsável da polícia política inicia o seu relatório com um facto:
             
    “Conforme se comunicou oportunamente, através dos rádios em referência no dia 17 do corrente as nossas tropas do Niassa, na intenção de destruírem aldeamentos de populações de Moçambique refugiadas em território malawiano e onde de acoitam grupos de terroristas da FRELIMO, que vêm assediando a nossa região fronteiriça adjacente a Massangulo e Chala, penetraram pelo interior do país vizinho cerca de 6 quilómetros e destruíram parcialmente a povoação CUIZIMBA, da área do Departamento de FORTH JOHNSTON”.
               
         Depois faz o enquadramento da operação:
               
      “Segundo a informação prestada pelo Posto desta Polícia em Mandimba, o incidente ocorreu do seguinte modo:
               
        - No momento em que os dois grupos de combate da Companhia de Caçadores 1626, comandados pelo Capitão COELHO destruíam palhotas, foram surpreendidos pelo fogo de elementos da polícia malawiana e puseram-se em fuga para o nosso território. 

      Na confusão da retirada, o 1º cabo ARTUR AUGUSTO MELO FERREIRA, encarregado do morteiro, perdeu-se.
                
     No dia seguinte, 18, após vaguear pelos montes do Malawi e não conseguindo orientar-se em direcção à Mandimba, entregou-se à população, que, por sua vez, o apresentou à autoridade local – CATULI. 

     Aí foi algemado e à noite transferido para o posto policial fronteiriço de Namueras, onde, por casualidade, foi visto pelo inspector NHAMA, de passagem para FORTH JOHSTON, que o fez desalgemar  e transportou imediatamente para o Posto desta polícia em Mandimba, onde o entregou sem quaisquer formalidades. 

       O morteiro e a pistola individual foram entregues, no dia seguinte, 19, ao comandante do estacionamento militar de Mandimba.
                 
      A actuação foi monstruosa, na própria versão da PIDE:
                
        “Acrescenta o nosso posto de Mandimba.
                 
        Logo que no dia 18 teve conhecimento do ocorrido, o chefe do Posto deslocou-se a Namueras – posto policial congénere – a fim de saber pormenores. Em conversa com o chefe da polícia, foi informado dos actos praticados pelas nossas tropas, que, resumidamente, consistiriam no seguinte: 61 palhotas e 18 celeiros de milho queimados, 24 cabritos e várias bicicletas roubadas; todo o dinheiro desaparecido, incluindo 300 libras dum trabalhador regressado há pouco da Rodésia. 

      Toda a população desapareceu, não (se) sabendo o seu paradeiro. 

      O chefe da polícia lamentou a falta de escrúpulos das nossas tropas e acrescentou que a continuar assim as boas relações entre o Malawi e Portugal poderão ser prejudicadas”.
                 
        A PIDE, através de um funcionário menor, arrogava-se do direito de intervir na própria governação do território, e essa propensão está estampada no relatório:
                 
     “Quando o chefe da subdelegação de Vila Cabral tomou conhecimento dos factos, avistou-se com o Exmº Governador do Distrito do Niassa, que manifestou desconhecimento dos mesmos e incumbiu-o de averiguar o sucedido junto do comandante do Sector *A*. 
      
      Em presença deste comandante, o mesmo Senhor informou ter conhecimento da ocorrência desde a data da mesma, mas o chefe da subdelegação ficou com a impressão de que o sr. Brigadeiro Hipólito pretenderia obscurecê-la”.
                   
     A submissão do oficial-general aos ditames do zeloso subordinado policial:
                   
     “No dia 23, o senhor brigadeiro HIPÓLITO deu conhecimento ao chefe da subdelegação de que tinha recebido uma mensagem do comandante do Batalhão a que pertence a Companhia 1626, e que deu origem ao incidente, onde lhe era comunicado ter havido um acordo entre as forças estacionadas na zona fronteiriça do Malawi e as autoridades daquele país, para a entrega recíproca de indivíduos capturados de um e outro lado, sem quaisquer formalidades, devido ao qual tinham sido entregues três malawianos em troca do 1º cabo atrás citado, considerando o incidente sanado, não só por isso, como ainda por ter determinado a cessação da operação que se vinha realizando ao longo da fronteira”.
                   
        A finalizar, o subdirector em Lourenço Marques sugere, mesmo, que se actue contra os militares que se movimentaram fora da sua alçada.
                  
          “Haverá que convir na existência de uma situação delicada, que requere estudo e orientação do poder competente. Em presença do melindre da matéria que antecede, restringimo-la ao conhecimento da Direcção-Geral e à decisão que melhor convier aos superiores interesses do País”.
                  
         A PIDE não desarmou. 

     Cerca de  15 dias depois, novo relatório era elaborado pelo subdirector em Lourenço Marques, lançando “achas para a fogueira” sobre a operação Vouga. 

      Neste relatório, o subdirector da polícia já tem perfeito conhecimento do nome da operação militar e explicita-o directamente no seu título.
                 
      E é através desse documento que se sabe que “outras (operações clandestinas no Malaui) se lhe seguiram, embora não haja referências das localidades atingidas”
                  
       Com data de 14 de Março de 1968, o responsável máximo da PIDE em Moçambique referenciava que “o plano de acção (sobre Cuizimba) foi apresentado ao comandante do Sector A, Exº Brigadeiro Hipólito, que o aprovou embora soubesse que se ia desenrolar dentro do Malawi, e que foi designado por operação Vouga.
                 
      “O exº Brigadeiro tinha prévio conhecimento da operação – ressalta o relatório - e sabia do seu fracasso, resultante do aprisionamento do 1º Cabo do morteiro, quando o chefe da nossa subdelegação se avistou com ele”.
                 
         E o solícito responsável escrevia depois a interferir na própria acção militar do comandante militar do Sector: “Apesar de ter conhecimento da operação e de tê-la aprovado, não deu conhecimento do Exmº Governador do Distrito do Niassa nem a esta Polícia”.
              
      E comentava venenosamente: “Sabe-se (sic) que o Exmº Governador do Niassa ficou melindrado com o que considera falta de colaboração da Autoridade Militar e, em desabafo, confidenciou ao chefe da nossa subdelegação que considerava a operação Vouga uma autêntica asneira”.
              
    O subdirector procura depois explorar todas as contradições junto do poder em Lisboa, e ao mesmo tempo mostrar serviço: “Temos conhecimento de que as autoridades do Malawi colaboraram com a polícia armada nas zonas atingidas por aquela operação e exercem vigilância próximo da nossa fronteira, com o pretexto de darem caça aos elefantes destruidores de machambas do povo”.
              
         “No dia 4 de Março, o Exmº Governador do Distrito deslocou-se de avião a Mandimba, a fim de se avistar com o Exmº General Comandante-Chefe Adjunto e Engenheiro Jorge Jardim, a fim de, em conjunto, resolverem o problema resultante da acção das nossas tropas em território malawiano”, faz saber o burocrata policial, dando a entender que são os civis que procuram resolver a situação criada pela “asneira” militar.
              

Jorge Jardim e Hastings Banda

        Depois em dois parágrafos lança a ideia de que os dois comandantes militares envolvidos na operação, o da companhia e o do sector, revelam uma repugnante baixeza de carácter ao alijarem com as responsabilidades do sucedido.
              
       “O capitão Nogueira Coelho, comandante da força executante da Operação Vouga, segundo o Exmº Governador do Distrito confidenciou ao nosso Chefe da Subdelegação, procura diminuir a sua responsabilidade, alegando não corresponder à verdade o que se diz do saque praticado pelos seus soldados em território malawiano.
              
   “Segundo consta (sic) ao chefe da nossa Subdelegação no Niassa, o Exmº Brigadeiro Comandante do Sector A pretende alijar responsabilidades, que assaca ao capitão Coelho”.
             
        O policial termina indo ao ponto de comentar a opção operacional do comandante castrense no terreno: 
       
       “Parece que o Exmº Brigadeiro Hipólito ter-se-ia deixado arrastar pela euforia resultante de assaltos a bases inimigas implantadas em território malawiano, em especial à base CATUR. Todavia aqueles foram feitos em circunstâncias completamente distintas da operação Vouga”.                                   
             
       Como se pode inferir deste relatório da polícia política portuguesa, a operação que resultou a destruição da povoação de Cuizimba só foi “monstruosa” porque foi feita sem o conhecimento dos esbirros daquela.
             
          Na realidade, o relatório confessa-o: muitos outros assassinatos e destruições em território maluiano foram feitos, mas a diferença é que surgiram “em circunstâncias completamente distintas da operação Vouga”. 
     
     Aí a PIDE/DGS já lhe deu a benção, porque ela também estava lá.




                                                                                                             

Sem comentários:

Enviar um comentário