domingo, 20 de junho de 2010

SARAMAGO: LITERATURA UNIVERSAL QUE O VATICANO DESPREZA
























Faleceu, sexta-feira, o escritor português José Saramago, que se tornou uma figura destacada e marcante na literatura mundial nas duas últimas décadas.

Do ponto de vista nacional, e para sermos mais precisos, no espaço da lusofonia, a projecção da sua escrita trouxe um impulso enorme à divulgação e penetração da literatura centrada no português (falado nas suas diferentes matizes) na cultura internacional.

Do ponto de vista do debate de ideias, os seus livros, os temas centrais de alguns desses livros, tiveram uma mérito acrescido de agitar e obrigar a discutir, em todos os cantos do mundo, mas especialmente no chamado mundo ocidental, a actualidade do socialismo, a injustiça da repartição da riqueza.

Mas foram, justamente, os seus desafios literários, a sua ironia dilacerante, sobre o papel da religião, e em particular da religião judaico-cristã, cuja supremacia hoje está centrada na Igreja Católica Romana, que entusiasmou, causou sensação, fez brotar perplexidades em muitos milhões de pessoas. Não haja dúvida que a sua escrita, em torno desses temas, produziram um choque de envergadura sobre a mentalidade retrógrada da hierarquia suprema da Igreja Católica, e, naturalmente dos seus apaniguados e fiéis ortodoxos internos em diversos países, incluindo Portugal.

Quando a intelectualidade dos mais diversos quadrantes reconhece a importância e agudeza mundial da literatura de Saramago e o elogia, como tal, na hora da sua morte, o Vaticano, que se diz seguidor de Jesus Cristo, tolerante, aberto a ideias diferentes, perdoador das ofensas de outrem, atacou duramente o escritor com uma insolência cobarde de quem não se pode defender.

Para o efeito, o séquito de cardeais, encimado pelo Papa, não o fez directamente, mas utilizou o seu porta-voz de imprensa, o jornal diário Osservatore Romano, na sua edição de domingo, considerando que Saramago foi um "populista extremista" e um "ideólogo anti-religioso"

Citando as agências internacionais, o jornal colocou logo um título acintoso "O grande (suposto) poder do narrador", desenvolvendo depois no texto uma "critica com virulência" ao Prêmio Nobel de Literatura, que, segundo o Osservatore Romano, era marxista e ateu, como se tal rotulagem fosse um crime digno da Inquisição e das figueiras fomentadas pelo fanatismo irracional do Papado romano nas Idades Médias e Moderna.

O Osservatore Romano definiu-o como "um ideólogo anti-religioso, um homem e um intelectual que não admitia metafísica alguma, aprisionado até o fim em sua confiança profunda no materialismo histórico, o marxismo".

O curioso é que a seccção portuguesa da Igreja Católica Romana tomou uma posição diferenciada da Santa Sé.

Também não o fez, directamente, pelo conclave dos bispos católicos, é certo, mas utilizou o
Secretariado Nacional da Pastoral da Cultura (SNPC), da Igreja Católica, através de um comunicado, saído domingo à tarde - ou seja, horas depois da posição do jornal oficial do Papado, no qual manifesta “o seu pesar na morte de José Saramago, grande criador da língua portuguesa e expoente da nossa cultura”.

O comunicado assinala, em contradição, com o Vaticano que “o cristianismo e o texto bíblico interessaram muito ao autor como objecto para a sua livre recriação literária” e que nessa “exigência e beleza” há uma“aproximação” que o SNPC sublinha.

Todavia, o secretariado católico lamenta “que ela nem sempre fosse levada mais longe, e de forma mais desprendida de balizamentos ideológicos”.

No documento do SNPC, a organização da Igreja Católica acrescenta que José Saramago “ampliou o inestimável património que a literatura representa, capaz de espelhar profundamente a condição humana nas suas buscas, incertezas e vislumbres”.

“Mas a vivacidade do debate que a sua importante obra instaura, em nada diminui o dever da cordialidade de um encontro cultural que, acreditamos, só pode ser gerado na abertura e na diferença”, segundo o texto.

Naturalmente, o ataque desabrido do Vaticano tem um significado: o debate introduzido, ao longo dos anos, pelos escritos e declarações públicas de Saramago teve repercussões no seio da própria Igreja Católica, e de modo particular, nos seus fiéis. Isto quer dizer que, para o Papado, os ideais do escritor português são temidos, porque são argumentados e baseados em contradições que minam a própria credibilidade da construção ideológica e política da Santa Sé.

Esta situação, na minha opinião, engrandece a obra e a genialidade de Saramago.

Todavia, deve ser feita uma análise crítica mais profunda da sua acção e da sua própria militância política, mas isto, torna-se secundário, face ao gigantismo da sua obra e projecção cultural e literária.

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